Código Civil, Código Civil - Direitos dos Contratos

1 O contrato em meio aos negócios jurídicos – introdução

Damos o nome de fatos aos acontecimentos que vivenciamos em nosso ambiente social. E, entre estes, sobressaem os fatos jurídicos (1) que podem ser definidos como todo acontecimento decorrente da natureza (2) ou da atuação humana, do qual deflui efeitos para o Direito.

Exemplo de fato é o raio que cai no oceano sem maiores consequências. Exemplo de fato jurídico é o mesmo raio que queima uma embarcação (3), ou ainda, a compra e venda de peixes contratada entre o dono da embarcação e o proprietário de um supermercado; o dever de reparar o dano causado numa colisão de veículos; a obrigação de restituir uma soma de dinheiro obtida sem qualquer razão de direito (enriquecimento sem causa (4)).

Dentro dos fatos jurídicos  decorrentes da atuação humana (5)  devem ser ressaltados os  atos jurídicos – em sentido amplo -, que se subdividem em lícitos e ilícitos, conforme estejam ou não de acordo com os preceitos do ordenamento jurídico.

Os lícitos dividem-se em atos jurídicos em sentido estreito, em atos-fatos jurídicos e em negócios jurídicos. Isso porque, em algumas ações, o fato humano consiste em perdoar uma dívida, noutras em apropriar-se de um objeto da natureza e, por vezes, tem em mira a realização de um verdadeiro negócio em que as partes criam normas para regular seus interesses.

Observe-se que a palavra negócio aqui tem sentido um pouco diferente de “negócio” utilizado na linguagem corrente.

Negócio (jurídico) significa o querer (6) exteriorizado dos sujeitos de direito quando resolvem disciplinar seus interesses, obtendo direitos e assumindo obrigações, sob a autorização do ordenamento jurídico (7).

Nesse sentido, cabe assinalar que quando o legislador do Código Civil de 1916 falava em “ato jurídico” estava, na verdade, pretendendo se referir a “negócio jurídico”.

Nas palavras de Luciano de Camargo Penteado

O negócio jurídico, como expressão da autonomia privada, é manifestação da liberdade humana. Expressa em torno a uma declaração, circunscrita a determinada circunstâncias, com objeto e forma, a vontade forma um todo incindível com clausulado próprio, modelagem específica e tipo a que se pode reconduzir cada uma das categorias. O negócio jurídico, entretanto, nada obstante a recorrência que adquira, podendo ser reconduzido a modalidades conhecidas, como os contratos, o acordo de transferência de propriedade, o casamento, o testamento, muitas vezes se recobre de matizes e circunstâncias especiais. O negócio jurídico é expressão da livre iniciativa, reconhecida constitucionalmente, a partir da qual se podem estruturar atos de vigência e expressão do jurídico na sociedade.Fundamento da República (CF, art. 1º, IV), o valor social da livre iniciativa é o que permite às partes querer e, mais que isto, querer de um modo ou de outro, plasmando sua vontade como objeto dos negócios dotados de força preceptiva (8).

Destarte, esta manifestação da vontade dos agentes particulares, fruto do princípio da autonomia privada (9), encontra-se umbicalmente relacionada ao princípio da liberdade de contratar. Este, por sua vez, encontra limites nas normas jurídicas de ordem pública (imperativas, cogentes, que não podem ser afastadas ou contornadas pelos particulares (10); e, um contrato de locação de bem imóvel não pode ter por objeto o comércio de drogas ilegais). Limita-se ainda pelos bons costumes ( e nossa moral social não admite que banhistas frequentem as praias nus(11)) e pelos princípios da boa-fé objetiva (CC, art. 113 e 422) e da função social do contrato (CC, art. 421)

(1) Marcos Bernardes de Mello assina que: “Parece ter sido Savigny quem primeiro empregou a expressão fato jurídico (juristiche Tatsache), definindo-o: ‘Chamo fatos jurídicos os acontecimentos em virtude dos quais as relações de direito nascem e terminam” (Teoria do fato jurídico: plano da existência. 12 ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 105). Outras características, circunstâncias e efeitos podem ser adicionados a esta noção, tais como, acontecimentos que propiciam a conservação e modificação das relações ou situações jurídicas além das que impliquem na qualificação de uma pessoa, de uma coisa ou de um fato (p. 106)

(2) Os fatos jurídicos que decorrem apenas de fatos da natureza (sem participação da vontade humana, ou em circunstâncias em que esta vontade se manifesta de maneira indireta = nascimento de uma criança) são denominados fatos jurídico em sentido estrito e se subdividem em ordinários e extraordinários. Exemplo dos primeiros: nascimento, morte, efeitos do decurso do tempo, como a prescrição e a decadência. Dos segundos: os fatos que normalmente se enquadram nas hipóteses de caso fortuito ou de força maior, tais como: curto-circuito, desmoronamento de uma ponte ocasionando danos num ônibus, greves, blackouts (apagões), terremotos, inundações, tsunamis, desde que caracterizados pela imprevisibilidade, extraordinariedade e inevitabilidade: CC, art. 393, parágrafo único. Atente-se para a crítica de que a prescrição e a decadência não poderiam, a rigor, ser enquadradas na categora de fatos jurídicos de sentido estrito: “A prescrição e a decadência são relações entre o decurso do tempo e a inércia do titular do direito. Ambos tem sido reconhecidos universal e pacificamente como fatos jurídicos em sentido estrito. Entretanto, não são acontecimentos da natureza ou materiais. O próprio tempo não é nem uma coisa nem outra e também não é bastante para produzir os efeitos in casu lhe são atribuídos, pois cumpre que esteja associado a uma inércia qualificada de dados sujeitos” (Celso Antônio Bandeira de Mello. Curso de direito administrativo. 26 ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 368).

(3) Pode-se imaginar algumas relações jurídicas originárias desse acontecimento: lesões físicas ou até mesmo a morte de marinheiros e as consequentes questões de natureza trabalhista, previdenciária e sucessória; a embarcação provavelmente teria sido objeto de um contrato de seguro daí advindo as indenizações etc.

(4) CC, art. 884-886

(5) Dentro dos limites desta obra, a classificação proposta não abrange as leis e as enorme profusão de atos normativos de conteúdo jurídico, bem como aqueles próprios do direito administrativo.

(6) A deliberação livre das partes constitui o motor propulsor dos negócios jurídicos. Todavia, deve-se assinalar a corrente doutrinária liderada no Brasil por Antonio Junqueira de Azevedo que acentua a “necessidade de reconhecimento social e a necessidade de ‘despsicologização'” dos negócios jurídicos. Nesse sentido, o contrato não poderia mais ser definido como um acordo de vontades, mas como um negócio que socialmente é interpretado como vinculante para as partes envolvidas. “Vínculo que nasce não apenas do encontro abstrato de vontades, mas de comportamentos socialmente considerados como integrantes de uma relação contratual” (Wanderley Fernandes (Coord.). O processo de formação do contrato. Contratos empresariais. Série GVlaw. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 213). Junqueira de Azevedo assevera que: “O negócio não é o que o agente quer, mas sim o que a sociedade vê como a declaração de vontade do agente” (p. 21); o autor exemplifica com a conversão substancial do negócio jurídico prevista no art. 170 do CC: “Ora, o negócio resultante da conversão não foi previsto nem querido (essa situação é um pressuposto da conversão) e, ainda assim, ele é um negócio jurídico” (p. 8) (Negócio jurídico: existência, validade e eficácia. São Paulo: Saraiva, 2002).

(7) Para Antonio Junqueira de Azevedo: “o negócio jurídico é todo fato jurídico consistente em declaração de vontade, a que o ordenamento jurídico atribui os efeitos designados como queridos, respeitados os pressupostos de existência, validade e eficácia impostos pela norma jurídica que sobre ele incide” (op. cit., p.16)

(8) Cláusulas típicas do negócio jurídico: condição, termo e encargo. In: Renan Lotufo e Giovanni Ettore Nanni (Coords). Teoria geral do direito civil. São Paulo: Atlas, 2008, p. 468.

(9) Autonomia = auto + nomos, que significa o poder de autonormatizar, isto é, de as partes estabelecerem regras para si próprias, ficando submetidas e vinculadas ao que mutuamente se obrigaram (pacta sunt servanda).

(10) Em Ricardo de Carvalho Aprigliano encontramos a aceitação da doutrina corrente, mas também a seguinte análise entre ordem pública e direitos indisponíveis: “Ocorre um fenômeno de continência, pois do universo mais amplo de direitos regulados por leis imperativas ou cogentes uma parcela menor abrange direitos indisponíveis”, para mais adiante acrescentar: “A ordem pública não é incompatível com a disponibilidade sobre certos aspectos do direito, nem com renúncia ou transação. Da mesma forma, os atos praticados em violação à ordem pública não necessariamente importarão em nulidade absoluta, pois muitas vezes esta solução, de cominar de nulidad tais atos, não chega a solucionar adequadamente o problema”. (Ordem pública e processo: o tratamento das questões de ordem pública no direito processual civil. Coleção Atlas de Processo Civil, Coord. Carlos Alberto Carmona. São Paulo: Atlas, 2011, p. 17-19)

(11) A referência é para as praias de maneira geral e não para aquelas em que se convencionou admitir a prática de nudismo ou naturismo.

JORGE JUNIOR, Alberto Gosson, Direito dos Contratos. São Paulo: Saraiva, 2013.

Transcrição das páginas 19-23

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